Tudo é autobiografia, escreveu José Saramago. Um lugar ao norte, romance de Silvia Gerschman, é também essa mesma jornada íntima noite adentro. Em um Brasil convulsionado e dilacerado, somos testemunhas de vidas fragmentadas e à deriva, de laços familiares e de amizade que não suportam o peso da verdade. Através da história de Narcisa, filha de fazendeiros e mulher à sombra de sua própria existência, nos deparamos com as feridas que dão corpo ao nosso mosaico de mazelas e imperfeições. Como em um drama clariceano, em que tempos e espaços se cruzam e se consomem até que nada mais reste, a autora dá voz a um caleidoscópio de contradições e imperfeições, talvez, as únicas certezas que, realmente, possuímos. Se Henry James colocou em Maisie a responsabilidade de enxergar o mundo e interpretá-lo de uma maneira singular, antes que fosse devorada pelas convenções e silêncios da vida adulta, Gerschman impõe o mesmo jogo a Narcisa, o vórtice de Um lugar ao norte. É partir dela que tudo existe e se desconstitui, e que se revelam os fantasmas e os idiomas privados. Ao mesmo tempo que investiga tantas inflexões e dissensões, a escritora cria uma narrativa elegante e charmosa, bem delineada e fluída, em que linguagem e conteúdo se articulam com originalidade e múltiplas camadas. Um lugar ao norte carrega o leitor por um vale de lágrimas, mas também por momentos de uma ironia fina e inteligente, de cenas lapidadas com a força de quem conhece a precisão da palavra. Tudo está muito claro. A desigualdade social. A reforma agrária que nunca chega. O coronelismo e as milícias. A misoginia velada e estruturada. As relações incestuosas e de aparência. Em uma terra de estranheza, como a que encontram os em Um lugar ao norte, o afeto é a única resposta para as perguntas nunca feitas. Nesse mundo em pedaços, o que é a vida diante da barbárie? O romance não deixa dúvidas das batalhas que trava tampouco de suas metáforas e representações , porém, sem cair no vão da literatura urgente e